Sunday, February 29, 2004

Vejo-o todas as manhãs. Vou eu a sair de casa, atolada em códigos e livros maçudos, quando o vejo numa azáfama incomparável tendo em conta o cedo da hora. Desce e sobe a rua vezes sem conta, atarantado, olhando o relógio num alvoroço invulgar. Fala sozinho e esbraceja agressivamente quando, presumo eu, o “outro” argumenta algo do seu desagrado. Isto é assim há já alguns anos. Acho que as pessoas aqui da rua já se habituaram a ele, aos seus devaneios mais ou menos ridículos, às suas paranóias menos esclarecidas. Ninguém sabe de onde vem, onde mora ou se tem familia. Basta esta presença regular para que as perguntas deixem de ser feitas e passem a dar lugar às piadinhas fáceis, aos risinhos grotescos de quem passa. Uma noite, ao passar na Guerra Junqueiro, vi-o deitado mesmo em frente à montra da Corte-Fiel, enrolado numa manta retalhada, sozinho e com uma fatia de pão ressequida por entre os dedos gelados. Não tive coragem de olhar durante muito tempo. Nunca temos essa coragem, como se a carência extrema, no fundo, nos repugnasse. Mas a verdade é que me imaginei naquela situação, com o frio a trespassar-me o peito como duras espadas, com a solidão como única companheira, com uma fina manta a tapar uma dor que já nem sequer se deve sentir. Imaginei que histórias esconderá a secura daquele olhar, que recordações ou que sentimentos habitarão aquele coração doente. Lamento como todos lamentarão a crueldade que a vida reserva só para alguns. E só lamento porque sim, porque é o mais fácil, porque não tenho tempo para pensar muito nisso, porque também tenho as minhas preocupações, as minhas pequenas dores, os meus problemas. E viro o olhar sempre que os espasmos do meu coração se intensificam quando presencio estas realidades. Afinal, somos todos um pouco assim. A verdade, é que quando me imaginei naquela situação, só pensava o quanto seria bom se alguém um dia se lembrasse de mim e me viesse dar a mão, um gesto simples do tamanho do mundo. Afinal de contas, não seria preciso muito, se algum dia conseguíssemos abdicar um pouco de nós próprios...

Saturday, February 14, 2004

"Tira a mão do queixo, não penses mais nisso..."

É curiosa a forma como o tempo nos vai concedendo as respostas que esperamos. Seja através de uma melodia forte, de uma manhã diferente, de uma vitória conseguida... Ainda que a cegueira que nos torna ingénuos pareça ganhar terreno em dias cinzentos, as horas que correm encarregam-se de nos encaminhar para a coragem de outros lugares. E é de felicidade que a nossa alma se veste quando nos apercebemos desses caminhos alternativos e desistimos do desesperante masoquismo do silêncio. É um sorriso sempre reencontrado que o nosso olhar desenha quando descobrimos que o brilho do escuro se apagou convictamente. Em alturas como estas, basta-nos essa felicidade, esse sorriso...
E neste dia em que os corações palpitam pelas montras de todas as lojas e em que o vermelho da paixão parece pincelar o sol da manhã, somos levados a perdermo-nos pelos olhares dispersos e ansiosos dos namorados que se aguardam desesperadamente. Numa simples corrida matinal, testemunhamos os sinais de um dia igual mas diferente, onde todos os encontros e desencontros são previamente planeados, onde qualquer meta fica a anos-luz do ponto presente. Por entre as batidas dos corações apaixonados, inesperadamente, o tempo parece encontrar-se e participar da mesma passada rápida e ofegante a que nos habituamos.
Ás vezes basta apenas um gesto ou a sua falta para podermos demolir os muros que o medo um dia fez erguer. E é inteiramente verdade que enquanto houver ventos e mar vamos sempre continuar a construir a terra dos nossos sonhos...


(Há bastante tempo que não actualizava o meu blog. A minha ausência cibernética deve-se a um vírus inesperado com o qual tenho construído uma bela inimizade! )