Monday, January 23, 2006

“Não, não quero nada
Já disse que não quero nada
(…)
A única conclusão é morrer (…)”

Álvaro de Campos

A certa altura deixei de me ver.
Acho que foi por ter ousado sacudir o pó do passado e revisitado o meu outro lugar. Aí tudo me pareceu tão etéreo, tão mais denso, tão mais luminoso, tudo tão maior que, num suspiro silencioso, dos que traduzem tudo o que nos vai na alma, não mais senti vontade de regressar à vida. Pode ser que isto só aconteça dentro de mim, a morte, e que os meus passos vão continuando a suceder-se no tempo real, tão autenticamente que ninguém ousará questionar a sua mentira.
Até à exaustão, continuo, porém, a pintar todas as formas de um “eu” desconhecido, em tons de um cinzento abstracto. Com movimentos irregulares, nervosos e forçados, tento materializar-me com todas as cores e formas possíveis, mas é na penumbra que o meu olhar se estende. Desisto. Desisto de tentar perceber se fui eu que me perdi ou se foi o meu lugar que se esqueceu de mim. A partir do instante em que os papéis me sobram rasgados já de nada me vale tentar alcançar a compreensão dos pequenos nadas que restam na consciência.
A certa altura deixei de me ver. E de querer alguma coisa. E resta-me o nada, que é, mesmo assim, maior do que sou.

Wednesday, January 04, 2006

Todos os dias em que não estiveres irei escrever-te. Nas palavras nada do que sinto pode caber, mas escreverei. Para não adivinhar a distância e o passado. Para sentir menos. Pode ser que consiga pendurar na parede do teu coração a minha janela, desarrumar tudo e estender-me no teu mundo, na esperança que me dês a chave. Ou que me abras a porta. Para espalhar pedaços de céu, para sempre, nos teus minutos. Esse teu silêncio diz mais de ti do que se dissesses. E é por isso que te acredito mesmo que continues a fugir. E quero que me deixes. Foge sempre para que nunca te alcance. Para que o sonho me faça correr. Mesmo na ausência de hoje, em que quase te sinto como se fosses gente, vale mais pintar os dias de ternura e deixá-los respirar sorrisos do que te chorar. Não é difícil. Deixar a marca da doçura esbater as manchas esborratadas da angústia. Instantes há em que desejo que te engasgues violentamente nessa mágoa que te veste Pode ser que, de uma vez por todas, me pendures na janela do teu coração e me deixes desarrumar tudo. Ou que me abras a porta. Para aprenderes a agarrar os minutos como pedaços de céu. E é por isso que em todos os dias da tua ausência escrever-te-ei, ainda que nas palavras nada do que sinto possa caber…