Thursday, November 25, 2004

Tenho as mãos trémulas de tanto escrever, numa escrita apressada onde as palavras se atropelam, onde o tudo que se quer dizer se disfarça por entre vírgulas e parágrafos mais ou menos previsíveis. Na ansiedade desenfreada de conseguir desenhar castelos de papel em sonhos infinitos, esqueço o rumo dos sentidos e perco-me na irracionalidade medíocre de quem desconhece o rasto da verdade. É essa verdade que procuro, que escondo de propósito e que arremesso contra o muro que me separa do mundo que queria alcançar. E vou vivendo das meias-mentiras que disfarçam sorrisos fáceis, do triste passar do tempo, do som sem cor... E vou morrendo aos poucos sem saber que a vida vive a meu lado, soltando gritos desesperados num vazio que ousei um dia construir.
Tenho o olhar cansado de tantas imagens que o preenchem, imagens do ontem e do hoje que perseguem o meu dia atordoado, presa a tanta coisa que não me prende, infinitamente enclausurada na memória de dias que já não vivo mais.
Paro de escrever e escondo o olhar na escuridão de um silêncio que quero, hoje, mais do que tudo, escutar com alma...

Joana Salvador





Tuesday, November 23, 2004

Eterno voar

Paris... nunca lá estive, mas sei que te reencontrei lá na passada noite, no meio de uma neblina intensa, onde se entrelaçaram nossos mundos numa natural perfeição. Eras tu... Reconheci-te mal te vi aproximar num jeito demorado, estendendo-me a mão com a meiguice única de um olhar que se não escreve. Na penumbra da noite, vi-te chegar com a saudade que nos envolve, uma saudade que aprendi a esquecer mas que reaprendo sempre que te sinto perto. E é inevitável que o nosso olhar se prenda, que o nosso corpo se toque e que os nossos lábios se unam ao som da melodia que nos acompanha desde a noite mágica em que nos conhecemos. Na atracção movediça que nos faz voar de noite ao encontro um do outro, a distância perde o sentido e inexiste perante este sentir que é nosso. Vi-te chegar e abracei os teus braços como quem abraça o mundo, num desespero feliz de quem sabe que os minutos acabam sempre por passar depressa demais. No terminal da nossa viagem, basta o silêncio e um mero olhar para tudo ficar escrito em nós. Aproximei-me e segredei uma lágrima de tristeza por te saber tão efémero em mim. E nessa ondulação vibrante em que nos sentimos mais uma vez, vamos-nos perdendo em nós, acariciando a pele suave dos corpos que se autonomizaram dos sentidos e que voam eternamente por entre a paralisia intensa do tempo. Não houve despedidas... nunca as há quando existe uma verdade indestrutível e imaterial...


Joana Salvador

Thursday, November 18, 2004

Lágrima, Saudade...

Que retrato presente pinto dos teus traços longínquos. Que saudades sinto do teu abraço forte, das tardes em que passávamos a jogar às cartas e da minha batota infantil, que saudades da tua ingénua incredulidade perante os "nomes malcriados" que o Herman José tinha a ousadia de proferir na televisão...
Saudades de te escolher a roupa que te fazia mais bonita e de te acompanhar nas tardes em que visitávamos uma qualquer vizinha para beber mais um chá e conversar sobre o tudo que era exclusivamente nosso.
Recordo-me dos nossos maravilhosos lanches a três, sentados na mesa redonda da cozinha, onde batiam os raios de sol da janela que dava para o quintal, em que o avô fazia o chocolate quente mais ternurento que alguma vez beberei. Sempre resmungavas entre dentes de alguma coisa, ou porque o avô se esquecia de pôr o açucar na mesa, ou porque simplesmente não tinha dado a corda ao relógio da sala de jantar. Sempre proferias um "não" deliberado quando me esgueirava, pequenina, de mansinho, para as escadas que davam para a casa do quintal, onde se encontravam os baús imponentes do passado, com as roupas e os sapatos de outrora, que eu gostava de visitar. Raramente me permitias ir para lá brincar, pelo que esperava que começassem as novelas que ridicularizavas mas que tanto gostavas de ver. Nesse momento, lá ia eu para um outro tempo e espaço. Rodopiava por entre as teias de aranha e o pó acumulado das paredes dessa casinha meio abandonada, onde guardavas o tanto que já tinha feito parte de ti. Das prateleiras, retirava algumas loiças, pratos e talheres oxidados pelo tempo, e compunha os meus eventos sociais, ali, num momento de sonho onde a minha felicidade era extrema.
O avô vinha, depois, aliciar-me para mais uma jogatina de dominó que ocorria quase todas as tardes, no café do Sr.Martins, que me oferecia sempre um qualquer doce. Talvez por isso, porque de dominó percebia pouco, estendia contente a minha mão. O avô jogava concentrado mas nunca percebi se ganhava ou perdia, porque mal acabava um jogo, já todos tinham mecanicamente ordenado as peças para uma nova partida.
É da simplicidade destes dias e do tanto que eles me davam que tenho mais saudades. Quanto aos abraços fortes... hei-de continuar a dá-los por entre estes rasgos de memória doce que trago em mim.
Em cada lágrima, uma feliz saudade...


Joana Salvador

Monday, November 15, 2004

É a mim que o fazes...

Sempre que distribuis um sorriso, um olhar meigo, uma atenção especial a um ninguém desconhecido, é a mim que esse sorriso ou esse olhar chegam com reconfortante aconchego. Sempre que choras numa tristeza sem igual, num silêncio doloroso, são as minhas lágrimas que te sulcam os traços irregulares do rosto. E nesse caminho solitário que percorro a teu lado, quase não dás pela minha presença, ignoras a minha sinceridade e o meu sentimento, foges do meu mundo e esqueces-te que não há outro onde possas habitar feliz.
É a mim que magoas quando te calas para sempre, é a minha alma que se dilacera de cada vez que viras as costas e partes para um caminho diferente. Em cada passo divergente há uma espada afiada que trespassa meu corpo e que corta cada pedacinho vivo de mim.
Nessa escuridão e distância em que mora o teu olhar, soubeste pintar uma rejeição que ainda não compreendo. Soubeste escolher o pior caminho, aquele cujos obstáculos seriam todos suportados por mim, aquele em que as minhas lágrimas valeriam por dois rostos tristes... Escolheste-o deliberadamente só porque sim, porque tinhas de fazer sofrer alguém. Por cada olhar que se entristecia a teu lado, era aumentada a minha dor. Por cada momento feliz, o meu sorriso triplicava de emoção.
E hoje, desconheço-te o amor, a verdade e a entrega. Tudo aquilo que quis acreditar como fazendo parte do teu mundo. Por isso, esperei, corri e tropecei num choro aflito. Por isso, fui enganando minha razão e meu desespero. E hoje, continuas sem conhecer o amor, a essência da verdade e a felicidade de uma entrega altruísta.
Mesmo assim, caminho invisível a teu lado, num desejo constante de que oiças as minhas palavras e mudes o rumo do teu destino. Estou a teu lado, mesmo que não sintas a minha presença e continuo a partilhar a tristeza e o sorriso, como se eu fosse apenas o "tu" que sempre quis converter...

«Tudo o que fizeres ao mais pequeno dos teus irmãos, é a mim que o fazes...»


Joana Salvador

Thursday, November 11, 2004

Paz no silêncio...

O caminho ruidoso que descarrila sobre os nossos sentidos e que nos leva a lado nenhum é um artíficio criado por uma necessidade de disfarçar o vazio permanente. Assim, no decorrer de dias cinzentos e frios, escondemo-nos em calendarizações rigorosas, em dias e horas planeadas, numa ansiedade medonha. Fingimos sorrisos e abraçamos o nada, aquele que nos une a uma vida que esquecemos um dia numa qualquer esquina labiríntica do passado.
Perdemos a autenticidade e vivemos por entre o ruído e a pressa, esquecendo que a paz pode haver no silêncio...
Só essa paz, tranquilidade interior, nos pode alimentar o espírito, devolver aquele sorriso náufrago de verdade e fazer de nós pessoas melhores a cada novo amanhecer. Nesta acrobacia veloz, em que se procura um equilíbrio saudável entre o ser e o estar, somos forçados a estabelecer prioridades, a destronar o superficial e o momentâneo. Coloca-se-nos o desafio de sermos maiores do que a própria existência e levitarmos acima de tudo o que é circunstancial. O desafio de não nos deixarmos corromper pelo tempo e pelo desgaste da escuridão que por vezes se instala. O desafio de conseguir sentir a felicidade nas secas migalhas dos dias. Nesse momento seremos muralhas superiores ao próprio tempo e espaço.

São breves os momentos que nos anexam à vida que tantas vezes rasuramos sem pensar que o amanhã pode nem sequer existir mais...


Joana Salvador

Tuesday, November 02, 2004

Roedores de Alma


«Evita as pessoas agressivas, porque elas desgastam o espírito...»


Nunca vos aconteceu esbarrarem, num qualquer momento da vossa vida, com um roedor de alma? Uma daquelas pessoas que vos suga as forças com um sorriso nos lábios, que, num abraço ternurento, vos deita na linha abaixo do chão e que com mentira disfarçada de uma qualquer verdade aparece intermitente nas vossas vidas?...
É de um vil lobo vestido com uma pele de cordeiro de que vos falo. E são tantos os lobos que por aí deambulam, quais abutres famintos de morte. Muitas vezes, dou por mim a tentar converter um ou outro para a essencialidade da vida, para o que é realmente importante, o alimento do espírito, recebendo em troca uma frieza afiada que trespassa a pele, depois todo o corpo. Até parece que sinto os seus dentes ávidos a desfazer um ponto qualquer da linha que nos protege a alma, lugar sagrado do «eu» mais profundo. E não contentes, rasgam todos os outros pontos até que a própria linha se esquece dos contornos que era suposto proteger... E nesse momento, somos despidos de corpo e de alma e somos as vítimas ideais para o crime perfeito.
Damos por nós, uns bons milhares de horas depois, derrotados por um silêncio avassalador num buraco mais frio que o próprio vazio. E só depois de não restar um qualquer pedacinho vivo de alma é que nos conseguimos levantar, meio cambaleantes, e dar uns passos em frente. Pequeninos, porque a cicatriz permanece e a dor não se cala.
Infelizmente, acabamos por nos habituar a este existir selvagem, tanto que às vezes transformamo-nós, nós próprios, em verdadeiros roedores de outras almas...


Joana Salvador