Thursday, November 18, 2004

Lágrima, Saudade...

Que retrato presente pinto dos teus traços longínquos. Que saudades sinto do teu abraço forte, das tardes em que passávamos a jogar às cartas e da minha batota infantil, que saudades da tua ingénua incredulidade perante os "nomes malcriados" que o Herman José tinha a ousadia de proferir na televisão...
Saudades de te escolher a roupa que te fazia mais bonita e de te acompanhar nas tardes em que visitávamos uma qualquer vizinha para beber mais um chá e conversar sobre o tudo que era exclusivamente nosso.
Recordo-me dos nossos maravilhosos lanches a três, sentados na mesa redonda da cozinha, onde batiam os raios de sol da janela que dava para o quintal, em que o avô fazia o chocolate quente mais ternurento que alguma vez beberei. Sempre resmungavas entre dentes de alguma coisa, ou porque o avô se esquecia de pôr o açucar na mesa, ou porque simplesmente não tinha dado a corda ao relógio da sala de jantar. Sempre proferias um "não" deliberado quando me esgueirava, pequenina, de mansinho, para as escadas que davam para a casa do quintal, onde se encontravam os baús imponentes do passado, com as roupas e os sapatos de outrora, que eu gostava de visitar. Raramente me permitias ir para lá brincar, pelo que esperava que começassem as novelas que ridicularizavas mas que tanto gostavas de ver. Nesse momento, lá ia eu para um outro tempo e espaço. Rodopiava por entre as teias de aranha e o pó acumulado das paredes dessa casinha meio abandonada, onde guardavas o tanto que já tinha feito parte de ti. Das prateleiras, retirava algumas loiças, pratos e talheres oxidados pelo tempo, e compunha os meus eventos sociais, ali, num momento de sonho onde a minha felicidade era extrema.
O avô vinha, depois, aliciar-me para mais uma jogatina de dominó que ocorria quase todas as tardes, no café do Sr.Martins, que me oferecia sempre um qualquer doce. Talvez por isso, porque de dominó percebia pouco, estendia contente a minha mão. O avô jogava concentrado mas nunca percebi se ganhava ou perdia, porque mal acabava um jogo, já todos tinham mecanicamente ordenado as peças para uma nova partida.
É da simplicidade destes dias e do tanto que eles me davam que tenho mais saudades. Quanto aos abraços fortes... hei-de continuar a dá-los por entre estes rasgos de memória doce que trago em mim.
Em cada lágrima, uma feliz saudade...


Joana Salvador

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