Friday, July 29, 2005

O tempo parou. Os pés pedem para caminhar. É neste impasse descrente que, como boneca pálida sem caminho, percorre a calçada familiar daquele bairro agora triste, mais cinzento. As pessoas já não sacodem a alegria à janela nem reparam sequer no regresso daquele rosto perdido. Continua a caminhar por entre as ruas estreitas, relembrando antigas piruetas e enérgicos rodopios. Ali não há horizonte. Só sonhos pretéritos, amordaçados em cada esquina. É como se estivesse a folhear um velho álbum de fotografias onde se espalham antigos abraços, sorrisos clássicos e caras esquecidas. Em cada uma dessas imagens rasuradas pelo tempo, um pedaço de vida. Ali fora feliz. O céu ameaça lacrimejar uma chuva oblíqua e denuncia a mensagem límpida do seu olhar. Tranquila, deixa para trás aquela calçada irregular. O tempo recomeça a contagem decrescente. Os pés pedem para caminhar…

Tuesday, July 26, 2005

Eterno regresso a casa

O cabelo revolto perdido pela face, as mãos esvoaçantes, os passos largos pela areia humilhada. A baixa temperatura de um magnificente pôr-do-sol. Os pés descalços que recolhem das algas segredos enregelam secos, parados, inconscientes. Na mágoa de uma recordação, um beijo salgado, trocado ali mesmo, naquele pequeno buraco de espaço, onde foram sussurradas as palavras fé, esperança, amor. Vinham simplesmente em ondas de uma ternura regular, cuja espuma luminosa acendia as velas da alma. Hoje uma onda impaciente fere aquele corpo e repugna aquela presença. No seu olhar límpido permanece, porém, a imagem daquele beijo. Focos de luz intensos. Depois é o sol que se esconde. O mar violento que grita. Uma fotografia que se afoga no frio da noite. O cabelo revolto amacia as lágrimas que sangram. As mãos desistem de querer voar. Os passos são agora inversos. De costas para o mar aproveita o sopro de vida que vem do lado de lá da realidade. E naquele momento breve feito imenso tempo é conduzida por sentimentos imateriais, solitários mas fortalecidos. Curva-se e agarra trémula a imagem que trazia consigo. Guarda-a no lugar reservado às coisas mágicas. E se tempo houver contar-lhe-á…

Monday, July 25, 2005

As horas

O nervoso miudinho do tic-tac do relógio da mesa cabeceira anunciava a chegada do derradeiro, o dia em que o passado é remexido num frenesim caótico mas necessário. Simultaneamente à passagem do último minuto de sonolência, os passos renascem e reconduzem a um caminho sem retorno. Um duche para refrescar os poros e libertar a memória da selecção inócua do tempo. Um pequeno-almoço exagerado para que o estômago não ameace anunciar o estado nervoso dos órgãos do seu corpo. O grande desafio. A imagem perfeita. Atingir a perfeição. Talvez aquela camisola amarela, bastante natural. Muito provavelmente a cor peca por franca neutralidade face ao espasmo que se quer provocar no olhar concomitante. Escolhe a cor-de-rosa forte, que esconde as rugas que os anos tatuaram no seu semblante. Aperalta-se com uma energia renovada à medida que o aperfeiçoamento vai trazendo resultados positivos. Uma nova imagem, o mesmo olhar. Triste, soterrado na certeza de que é um nada que regressa e que todas as esperanças e ilusões não são mais do que vozes mudas justificadas apenas na fria solidão que, desde a despedida, a acompanhou no rasto da petrificação. Na entropia fácil dos sentidos, deixou esmorecer uma lágrima maniqueísta. Determinada, porém, pincelou as maças do rosto e redefiniu os traços do seu olhar. Fecha a porta. O sorriso. As emoções. Veste-se de uma negra dureza, ao mesmo tempo que alarma uma viva felicidade. Dez minutos depois volta a ouvir-se o tic-tac do tempo, agora em câmara lenta, como se todos os sons do Mundo se calassem e tudo à volta paralisasse no momento em que se inicia uma profunda inspiração. E é o olhar que se cruza, a frieza que morre e a nudez de sentimentos que respira. A lágrima escondida por detrás de uma maquilhagem mal conseguida reaparece forte embora vacilante, desenhando no seu rosto as letras daquele nome longínquo. Nesta denúncia involuntária de fraqueza, o coração é tingido de um sentimento abortado e ela desesperada apenas quer fugir do terreno movediço desta realidade que já não conhece. Chega a casa novamente. Despe a camisola cor-de-rosa que lhe dera outrora alento e desmancha o seu corpo na tentativa de encontrar a peça que falta, a única, a que a pode ajudar a reconstruir o seu coração.

Tuesday, July 12, 2005

Numa declaração de desassossego tento escrever o que dentro de mim corre perdido, sangrando numa angústia que, como cinzas do que julgava certo, se espalha em bocadinhos de morte nos meus dias. Não me intimida o abismo que se estende por debaixo dos meus pés e esvazia a minha força mas sinto o meu fôlego cada vez mais derrotado por este cansaço desobediente. As sirenes rápidas do passado entoam no meu cérebro e estagnam-me perante a incerteza do próximo nascente. A minha razão esconde-se envergonhada por detrás do muro inóspito da fraqueza de espírito e, numa imprevista comoção, as minhas pálpebras ameaçam denunciar o pranto que é viver neste alvoroço de ideias distintas e de nulas decisões. Só na verdade que em mim habita, construo uma história feliz, feita de sorrisos e de inabalável sentir. Nessa embriaguez de sentidos, em que há imagens insistentes que me atravessam a saudade, consigo acalmar o frenesim de deturpadas emoções e desocupar-me de tudo para guardar cada minuto que é a minha vida...

Tuesday, July 05, 2005

Há uma força qualquer que quase me rasga ao meio, que me atira para o fundo, que não me deixa emergir e expirar demoradamente. Tento perceber o que me agarra os pés e não me deixa ver a claridade da manhã que já deve ter surgido no horizonte. Olho para baixo e uma névoa embriaga a minha visão que é agora distorcida e afunilada. A razão desiste pouco a pouco de lutar contra a falta de oxigénio deste interior de um nada que amedronta os meus movimentos circulares. Há uma qualquer energia que solidifica os pingos de sentimento do meu coração e me insensibiliza de tal modo que só o negro do vazio estremece enregelado junto ao meu desalento. Há uma dor hemorrágica que não falece. Que vagarosamente serpenteia no interior do meu corpo. O dia acontece e sou obrigada a esconder o sangue que me escorre pelas vísceras com o recurso a um qualquer paliativo concedido pela necessidade imposta de não chorar jamais. E ando, conturbada pelo resignado penar dos meus dias. E não choro porque mais vale aparentar a força do que transparecer uma fraqueza que sempre nos trai porque é verdade. E arrasto o meu olhar por falsos sorrisos e abraços imperfeitos. Dou o nada que é tudo o que tenho para dar e espero que essa força desista de me fazer fraca e me deixe encarar o meu próprio insucesso, sozinha, na sombra vacilante do meu medo. Espero que essa dor, assassina dos sonhos que desenho timidamente em folhas brancas de papel, cesse a sua vocação aniquiladora da minha existência e que, um dia, me deixe emergir e respirar os átomos da liberdade…