Monday, July 25, 2005

As horas

O nervoso miudinho do tic-tac do relógio da mesa cabeceira anunciava a chegada do derradeiro, o dia em que o passado é remexido num frenesim caótico mas necessário. Simultaneamente à passagem do último minuto de sonolência, os passos renascem e reconduzem a um caminho sem retorno. Um duche para refrescar os poros e libertar a memória da selecção inócua do tempo. Um pequeno-almoço exagerado para que o estômago não ameace anunciar o estado nervoso dos órgãos do seu corpo. O grande desafio. A imagem perfeita. Atingir a perfeição. Talvez aquela camisola amarela, bastante natural. Muito provavelmente a cor peca por franca neutralidade face ao espasmo que se quer provocar no olhar concomitante. Escolhe a cor-de-rosa forte, que esconde as rugas que os anos tatuaram no seu semblante. Aperalta-se com uma energia renovada à medida que o aperfeiçoamento vai trazendo resultados positivos. Uma nova imagem, o mesmo olhar. Triste, soterrado na certeza de que é um nada que regressa e que todas as esperanças e ilusões não são mais do que vozes mudas justificadas apenas na fria solidão que, desde a despedida, a acompanhou no rasto da petrificação. Na entropia fácil dos sentidos, deixou esmorecer uma lágrima maniqueísta. Determinada, porém, pincelou as maças do rosto e redefiniu os traços do seu olhar. Fecha a porta. O sorriso. As emoções. Veste-se de uma negra dureza, ao mesmo tempo que alarma uma viva felicidade. Dez minutos depois volta a ouvir-se o tic-tac do tempo, agora em câmara lenta, como se todos os sons do Mundo se calassem e tudo à volta paralisasse no momento em que se inicia uma profunda inspiração. E é o olhar que se cruza, a frieza que morre e a nudez de sentimentos que respira. A lágrima escondida por detrás de uma maquilhagem mal conseguida reaparece forte embora vacilante, desenhando no seu rosto as letras daquele nome longínquo. Nesta denúncia involuntária de fraqueza, o coração é tingido de um sentimento abortado e ela desesperada apenas quer fugir do terreno movediço desta realidade que já não conhece. Chega a casa novamente. Despe a camisola cor-de-rosa que lhe dera outrora alento e desmancha o seu corpo na tentativa de encontrar a peça que falta, a única, a que a pode ajudar a reconstruir o seu coração.

6 comments:

Anonymous said...

Os «passados» que voltam e teimam em voltar....Lembro-me de uma frase de uma música de Jobim:

«O que é que posso contra o encanto desse amor que eu nego tanto, evito tanto, e que no entanto volta sempre a enfeitiçar»

ou de outra ainda também das suas músicas:

«fiz de tudo e nada de te esquecer»

Esses «passados» tornam-se âncoras...que nos dificultam o andar em frente...ou andar seja em que direcção for...Mas ja dizia a minha (tão!) saudosa Avó: «Para a frente é q é o caminho!» (Por vezes é mt dificil, mas é preciso deixar o passado no sitio dele...)

Joana said...

É preciso deixar o passado no sítio dele. Mas ele desloca-se, persegue, caminha a teu lado nesse andar em frente que não é mais do que ilusão. Mas sim, é preciso saber despedi-lo. E saber guardá-lo no espaço reservado às coisas mágicas... :)

Obrigada.

Anonymous said...

...o que é, por vezes, extremamente dificil, quando o passado se assemelha a «fantasmas» que assombram o (nosso) caminhar...

Anonymous said...

Mas.....nao podemos viver de fantasmas, nao é? :)

Joana said...

Não, não podemos viver de fantasmas... o problema é quando eles são corpóreos e marcadamente presentes! Se ainda fossem apenas ondulações vagas e imprecisas. Mas muitas vezes vestem-se de um qualquer corpo e ressuscitam tudo aquilo que julgávamos perdido no tempo. Mas já dizia Rui Veloso: Não voltes ao lugar onde já foste feliz. É esta a regra da nossa sensatez! O problema aqui é que nos movemos num terreno alheio à razão... não é?

Anonymous said...

Completamente!.. E percebo-te tao bem!..Tb já estive aí...rodeada desses fantasmas...Acho q apenas o tempo e a distância nos podem ajudar a apaziguar essas coisas dentro de nós...