Thursday, November 09, 2006

«Escrever é soprar vida em objectos mortos.»
António Lobo Antunes

Tuesday, November 07, 2006

Falta-me...

O ar. De todas as vezes que me sinto escorregar na incerteza do real, vestimenta de tantos sonhos. Entro em pânico. Sempre que sinto esta incapacidade de olhar em frente e este sentimento tentador que tem sabor a desistência. Fecho os olhos. Inspiro e expiro o nervosismo que pulsa cá dentro. E se voltasse para trás, agora que ninguém daria por isso? Fraqueza, som que vem de dentro, de um qualquer canto recôndito da alma adormecida. Fraqueza. É precisamente o som que não queria admitir como melodia constante nos meus dias. E se fosse em frente, devagarinho, sem dizer a ninguém? Avançaria passo a passo, evitando os caminhos ruidosos da publicidade involuntária, e tentaria, chegada ao futuro, resolver estes destinos que não se determinam. Medo, tentáculos que enlaçam os meus movimentos e me impedem de avançar. Medo. De que todas as coisas que sempre alimentei com uma crença quase inabalável acabem simplesmente esquecidas e derrotadas. Falta-me o ar. E sinto-me escorregar na incerteza do que construo. Entro em pânico. Fecho os olhos. Fraqueza. Medo. É possível voltar atrás sem que me persiga este sentimento de desistência cobarde que hoje me assola o pensar?

Thursday, October 19, 2006

"Ao mergulhar, o mar entrou-lhe de roldão no pensamento e deslocou-lhe os sentimentos para uma zona de tal modo abstracta e afastada de qualquer tipo de emoção, que por momentos deu duas ou três braçadas num plano de si mesmo a que jamais tivera acesso e que, por muito pouco democrático desígnio da natureza, lhe pareceu que até então estivera reservado a deus. Fruto de alguns segundos, que cada poro do seu corpo registou de maneira diferente, acrescentando-lhe ao que acima se descreve uma sensação de elasticidade cronológica de que se lhe afiguraram pouco dignos os seus órgãos, esta experiência foi interrompida por um regresso à superfície que lhe devolveu a presença do areal e dos rochedos a que naquele instante a aragem insuflava uma realidade disjuntiva."
Luís Miguel Nava in O CÉU SOB AS ENTRANHAS (1989)

É como me sinto hoje, inundada de mar…

Wednesday, October 04, 2006

O Passado Sempre Presente

Com uma monumentalidade esmagadora que se prolonga no infinito do céu, ergue-se a cúpula, sólida e majestosa, que mais parece proferir uma bênção a todos os homens e mulheres que por ali meditam, num silêncio arrebatador.
A fachada é coroada por um frontão triangular abraçado por duas torres sineiras com relógios, onde se salpicam ordenamente estátuas monumentais e figurações relevadas alusivas ao mistério do Sagrado Coração de Jesus.
Não me detive nos passos, agora comandados pelo espírito, esqueci-me das horas que atrapalham o tempo dos homens e deixei-me mergulhar naquele espaço onde matéria e espírito se misturam harmoniosamente.
A nobreza dos materiais que ornamentam o silêncio daquele lugar dota o espaço de uma sobriedade quase perfeita. Ao fundo, a tela A Ceia, de Pompeo Battoni. No transepto direito, o túmulo estilo império de D. Maria I.
Impressionante como os pequenos detalhes invisíveis ao olhar superficial saltam agora à vista como sinais de devoção profunda. Já lá tinha entrado umas poucas vezes mas foi a primeira vez que interiorizei verdadeiramente a beleza firme e séria da Basílica da Estrela.
Invadindo o silêncio do momento, avança sobre mim uma senhora delicada com uma brochura da Basílica na mão questionando-me sobre a vontade de participar na visita guiada que se iniciaria dentro de alguns momentos. Agradeci o folheto com moderado interesse, com um movimento ainda embalsamado pelo relaxamento de espírito que experimentava, e recusei distraidamente a participação na visita. A senhora afastou-se com um sorriso e, enquanto a mesma se dirigia já a um casal que se preparava para tirar uma fotografia à nave central, aproveitei para me sentar uns minutos nos assentos de madeira enfileirados no corredor lateral direito. O folheto apresentava na parte de cima uma fotografia admirável da fachada principal da Basílica, que é densificada pela informação histórica escrita mais abaixo. Aí se diz que a Basílica nasceu da devoção da princesa herdeira D. Maria, futura rainha D. Maria I, que fez um voto no dia do seu casamento de que, no caso de ter um filho varão, que veio a nascer em 1761, procederia à construção de um convento para as religiosas Carmelitas Descalças.
Envolta num silêncio vertiginoso e irrecusável, demorei-me a sentir toda a história presa nas pedras erguidas pela força daquela devoção originária, quase embrenhada nos abismos da vida espiritual, até ao momento em que a hora presente me obrigou a retornar aos minutos apressados que só atrapalham o tempo dos homens...

Tuesday, September 05, 2006

Disse-te adeus e morri

Sempre. Entendimentos desencontrados do real que cerca a nossa visão. Da diferença, antes invisível, brota pequenina a mágoa constante que se aperfeiçoa com o passar do tempo e engrandece a dor com que se alimenta. Desapareces-me intermitente do horizonte do meu globo ocular, enquanto pisco insistente os olhos na esperança que a névoa que te acolhe se desvaneça no ar. Mas não, não te alcanço. Tenho comigo as palavras presentes que significam o contrário do significado dos teus passos. Elas não são mais verdade no meu coração. São meras palavras, pequenas demais, insuficientes para me abraçar na solidão que me ofereces. Olho para o corredor que se afunila nas minhas costas. Pensei que voltasses. Esta frase dita assim, timidamente, soa trémula, vibra no vazio e denuncia a tristeza pintada nos quadros que decoram o espaço. Engraçado. Antes não compreendia aqueles desenhos abstractos, despejados sem sentido naquelas telas. Hoje sinto que aqueles traços escondem um desencanto quase mágico. Mais ou menos o que hoje descubro. A magia revoltada por um desencanto viril e cruel. Baixo o rosto para apanhar uma lágrima que quase me escapa e tento com ela apagar a contradição sanguínea que as tuas palavras encerram. Quero deixar-te ir, agora que foste. E digo-te adeus.

Wednesday, August 23, 2006

Nunca te perdi

Hoje, doem-me a saudade e a morte lenta dos sentidos que a ausência traz.
Senti-te flutuar junto do meu espaço momentos antes de acordar. Sabia que se abrisse os meus olhos a vibração do teu sorriso se esfumaria na pressa do tempo real. Por isso, mantive-me estática, com os olhos afogados na almofada. Só a sentir-te. Sorrias pacientemente, com olhos doces de saudade, enquanto me afagavas o cabelo com a paixão de outrora. Sopraste-me um beijo de despedida ao ouvido, com palavras de vida. E deixaste-me inerte, ainda de olhos cerrados, com um arrepio permanente que ainda percorre todos os nervos do meu corpo e me impede de te deixar de pensar.
Trago-te em mim em cada lágrima que cai vagarosa na tua voz escrita nas linhas do passado, sinto-te no silêncio que tanto quero agarrar em mim, és a luz que me desperta para a vida e por trás dos meus olhos é a tua imagem que me alimenta a força de ser forte.
Hoje revisitei todos os teus lugares, os sorrisos, os abraços, toda a ternura e cumplicidade construídas nos laços que a vida nos dá. As cores da tua presença preenchem a dor que hoje é profunda e apaziguam este choro ferido de te saber longe.
Amanhã, mesmo antes de acordar, vou embrulhar-me quieta nos lençóis, à tua espera. E depois. E em todos os dias da minha vida…

Thursday, August 17, 2006

Não consigo sentir a tua falta.
És imagem morta nos registos da minha memória e mesmo assim, desfalecida, cansas-me. Só a ideia da tua presença ou o som ficcionado da tua voz fatigam-me.
Não queria que fosse assim. Mas no meu mundo construído de verdade não cabem as chantagens tenebrosas que ainda tens coragem de insinuar, nem os teus delírios insanos, angústias dramáticas que alimentas com lágrimas e sangue alheio.
Conseguisses tu sentir a tranquilidade daquilo que é autêntico e perceberias que aquilo que sentes em relação aos outros mais não é do que uma pobre projecção do vazio que em ti vive.
Sujas as crenças dos que desiludes, sugas tudo aquilo que é cor e verdade, disfarças sorrisos e lágrimas, esfaqueias o coração de quem por ti passa e esperas sair impune apenas com uma trémula aparição em realidades que não te pertencem. Desta vez, porém, apesar de a tua loucura ser credível, não vai ser assim. Não respondo com a frieza, porque não sei sê-lo, nem te dou o rancor, porque ele em mim não habita. Só te posso oferecer ajuda, ainda que no silêncio da minha inacção, mesmo que já a tenhas rejeitado, no único minuto em que ousei defender a tua existência.
Sabes? A resposta é o amor. O amor. E só o deve jurar quem o sabe cumprir.

Wednesday, August 16, 2006

Só existe aquele momento...

"Existe sempre no mundo uma pessoa que espera a outra, seja no meio de um deserto ou no meio das grandes cidades. E quando essas pessoas se cruzam e os seus olhos se encontram, todo o passado e todo o futuro perdem qualquer importância, e só existe aquele momento e aquela certeza incrível de que todas as coisas debaixo do Sol foram escritas pela mesma Mão. A Mão que desperta o Amor, e que fez uma alma gémea para cada pessoa, que trabalha, descansa e busca tesouros debaixo do Sol. Porque sem isto não haveria qualquer sentido para os sonhos da raça humana."

O Alquimista

Wednesday, August 09, 2006

“Eu nunca durmo, com a ferida do meu próprio sono”
Herberto Helder

Não sei pedir ajuda. Páginas e páginas em branco, silêncios que se instalam, portas que fecho sem olhar para trás. Que raiva que sinto deste embotamento, desta incapacidade total de ser directa no precisar. Não me quero assim. Quero explodir por dentro e queria que isso fosse redentor. E queria aprender a redenção e fixá-la para sempre...

Tuesday, July 11, 2006

Estou de acordo. A distância aproxima as pessoas quando elas ainda têm algo a dar umas às outras. Muitas vezes o questionar obsessivo dos caminhos que a vida nos apresenta esconde o medo fundo e solitário. Impede o voo para além dos limites do tempo e do espaço. Como forma de ceder a esse medo interrogativo, optaste por deixar de questionar e deixaste-te ir ao sabor da paixão alucinada, abraçaste outros braços, percebeste que o ser triste não impede o sorriso. Iludiste o teu coração com uma plenitude de sentimentos, como se o amor se pudesse roubar aos poucos, aqui e ali, num e noutro olhar. Desististe. Mas o que é verdade é mais forte do que todas as mentiras que te fazem coragem. O que é verdade volta sempre. Ao som de uma música silenciosa que outrora foi palco de aplausos apaixonados, à boleia de um perfume sedutor, nas letras que se vão escrevendo para iludir a saudade. E é curta, é sempre curta, a distância que une, pelo sentimento, duas almas perdidas no espaço físico do mundo. Por isso, não atormentes mais o teu coração ferido com mentiras de intensa paixão e permite-te voar para junto da tua verdade. Estou de acordo. Corre. Também não hesitarei, se algum dia a coragem for minha.

Thursday, May 25, 2006

Adeus

De olhar triste e profundo, caminhas sem caminho traçado, num trapézio de infinitas sensações, por entre ruas escuras e labirintos de morte. Teus olhos são máscaras de sangue e de lama, revestem-se de uma dureza inigualável e escondem lágrimas de fraqueza e solidão. Sorris. No entanto, sorris. Talvez na tentativa de o fazeres real em ti. Talvez por não saberes que chorar é a melhor forma de limpar a alma da amargura alojada por frustrações repetidas e por sonhos que jamais vestirão a tez do mundo real. Talvez por não saberes que um sorriso vazio te denuncia mais facilmente do que uma lágrima cheia de ti. Caminhas na minha direcção, com mãos descontraídas nos bolsos do casaco, andar infantil e propositadamente arrastado. Interpreto-te à medida que a tua sombra se solidifica no campo da minha visão. E vejo um menino que se julga homem, naturalmente selvagem, sem rumo ou direcção, porque a vida é madrasta e o coração solteiro. Oiço o teu grito ferido, o teu pedido de ajuda fortíssimo, mas, simultaneamente, vejo os traços da tua desistência forçada porque não queres saber ser diferente. Alcanças o meu espaço. Olá. Dizes-me em tom forte, que denuncia o teu total constrangimento. Passas a mão nervosa pelo cabelo negro. Respondes-me sem me dar tempo para te perguntar. Não sei o que faço aqui, mas é aqui que quero continuar. Por isso, é melhor saíres. É o meu território. É a minha vida. É o meu momento. Este não é sítio para ti. Metralhas-me estas frases com olhar afastado de mim e empurras a minha presença para longe. Queres-me ausente. Só assim consegues justificar o fardo da dor. Com a ausência dos outros que teimosamente afastas de ti. Continuo estática sem saber o que dizer. Mas nem por isso me abandono ao teu querer irresponsável de tão corrompido. Não preciso de sair. És tu quem me abandona naquela ruela escura, com imagens de morte pintadas nas fachadas dos prédios irreconhecíveis de tão degradados. Vejo-te desaparecer na penumbra da solidão que escolhes para os teus passos e quase acredito que a tua liberdade é ilimitada. Quase acredito que podes ser feliz…

Thursday, April 20, 2006

Sem pressa de passar

Como se as não tivesse sonhado, dou por mim a negar todas as imagens perdidas nos meus sonhos, a rasurá-las com a violência que só a mágoa profunda permite e, pela primeira vez, sem medo de me perder no tempo sem destino. As lágrimas acumulam-se no interior sanguíneo do meu coração e dirigem-se ao passado onde és figura feliz mas já distante. Ousei questionar porque não me comandava mais o sabor do vento, porque não me dava o céu as asas do mundo e porque é que é profundamente triste o sorriso da subordinação acrítica aos passos alheios. Não ouso mais. As respostas são o tempo. Tempo que corre devagar sempre que é para doer. Com o mesmo tempo, nego-me e a ti por medo, por cobardia, por profunda dor, que se espalha nas entranhas poeirentas do passado, por não saber mais se me quero. Ou a ti. Ou a nós. E hoje as horas passam devagar e inebriam o dia com tons escuros de uma noite que nunca deixou de o ser. E hoje os minutos carregam o meu pesado olhar, como se caminhassem lentos para a morte dos sentidos. E só hoje o tempo me suspira a culpa que não queria carregar, a culpa de ter tido oportunidade de te conhecer diferente… se te não tivesse sonhado demais. Desligo os sentidos do que sou e levito até ao outro lado da vida, na esperança infantil de que na outra margem esteja a solução para desamarrar a minha alma dos nós e laços que o mundo dá e abandono-me, pela primeira vez, sem medo de me perder no tempo sem destino…

Thursday, March 16, 2006

«O ódio é a cólera dos fracos.»
Daudet, Alphonse


Há qualquer vazio que nos mata na distância que sobra do nosso espaço, uma lágrima pequena que corre perdida por entre nossos dedos separados, olhares tímidos de vergonha. Há qualquer força que nos afasta e eu sei porquê. O abismo presente impõe-se entre todos aqueles cujas almas estão viradas do avesso, em alvoroço para um final, cegas para um destino, que querem a todo o custo conquistar. O apartar dos caminhos dá-se sempre que dois são e serão sempre dois e nunca simbiose perfeita do querer, do querer o mesmo ao mesmo tempo. O tropeço dos passos vinga sempre quando a melodia do presente não está em sintonia com os sons trazidos pelo futuro. O fim chega sempre quando um muro se sobrepõe a qualquer ímpeto de força para continuar, a qualquer crença na harmonia, à pureza do sentir. E hoje percebi o fim que me condiciona o caminhar e me leva para longe, onde tudo é mais verdade e menos dor. E hoje vejo-te assim, sombra de memória, sinal distante da minha pele, devorador de outras almas que não a minha, demónio perdido entre fantasmas ardentes de inferno. Prometo que não vou parar na evidência mórbida do mal que em ti existe. Prometo ir sempre mais longe, perto daquilo que sacia a minha alma, que são os ventos suaves dos sorrisos, a autenticidade do choro e verdade do amor. Jamais seguirei, por isso, esse exemplo de ser repositório de dor alheia, de frustrações pequenas, de ódios crescentes e mesquinho pensar. Volto a casa com a sensação mista de desilusão e felicidade extrema. As mãos tremem quando rodo a maçaneta da porta da minha vida. É por ela que clamo num pranto suave. É a ela que regresso. Contigo. Sempre contigo. Até ao fim.

Monday, March 13, 2006

Tenho evitado acordar-te. Talvez devesse fazê-lo de uma vez para tentar sacudir a inércia desses músculos que teimam seguir caminhos de vãs promessas e desejos frustrados. É tanto o ódio que te rasga a pele e tanta a indulgência da tua lassidão que afasto a possibilidade de arruinar esse sono de vazio profundo em que mergulhas o teu olhar. Por isso tenho evitado acordar-te. Embrulho as mãos no colo e sigo diferente destino na esperança de voltar a sorrir com a facilidade dos que comodamente acreditam.
Às vezes ainda te encontro em tantas palavras escritas em papéis brancos rabiscados a tinta azul, mas rapidamente volto a adormecer-te como se fosses vazio em cada regresso fustigado pela memória. E resta saber se o és. Lembro-me que te desapetrechei um dia dessa armadura de altivez camuflada e percebi-te sombra de gente. Mera sombra alimentada de alheias lágrimas e angústias, das fraquezas dos que dizes pequenos e infelizes. Parasita de escuridão, roedor de verdades e mentiras, pestilento de dores inacabadas. Mesmo assim, ainda gostava de te ver acordado num mundo em que é respirável a verdade, em que são ofegantes os sentimentos autênticos, no meu mundo, no espaço reservado à ansiedade apaixonada pela vida e seus segredos. Pode ser que um dia me dispa de receios e me encha de coragem e tente novamente acordar-te. Pode ser que nesse dia consigas perceber de que é feita a felicidade e que a vida não tem que ser sempre essa experiência de quase morte errante a que habituaste o teu pulsar. Por enquanto, porém, desacredito-te e à possibilidade da tua reconversão. E por isso tenho impedido o teu despertar no meu mundo.

Tuesday, February 07, 2006

Sim

Senti o teu olhar ferido a questionar o meu, dividido entre a necessidade de procura e a ternura do abandono. Lembro-me de ter ficado presa no mundo dos meus mistérios, internamente mergulhada nas insónias decorrentes das promessas viciadas por palavras quentes. Lembro-me da imagem que guardei do teu rosto. Do teu olhar humedecido a perscrutar ao milímetro todos os movimentos do meu corpo, como se esses pudessem denunciar o sentido da minha decisão. Perdi a voz por instantes, na tentativa de lavar a alma no silêncio e de abrigar de ti meu coração. Ou de mim. Não sei. Na distracção do meu esforço, percebi, porém, que começa em ti tudo o que se sente. Que o destino dos meus passos é o teu caminho. Mesmo antes de debitar em palavras estes pedaços soltos de pensamento, concedeste-me um beijo teu sem qualquer condição. Tivesse tido eu a oportunidade e teria rasurado o segundo anterior de tristeza em teu coração. Pediste-me um nada. Porém, renovada de razões, dou-te agora a vida em pedaços inteiros de mim. Sim. É um sim.

Monday, January 23, 2006

“Não, não quero nada
Já disse que não quero nada
(…)
A única conclusão é morrer (…)”

Álvaro de Campos

A certa altura deixei de me ver.
Acho que foi por ter ousado sacudir o pó do passado e revisitado o meu outro lugar. Aí tudo me pareceu tão etéreo, tão mais denso, tão mais luminoso, tudo tão maior que, num suspiro silencioso, dos que traduzem tudo o que nos vai na alma, não mais senti vontade de regressar à vida. Pode ser que isto só aconteça dentro de mim, a morte, e que os meus passos vão continuando a suceder-se no tempo real, tão autenticamente que ninguém ousará questionar a sua mentira.
Até à exaustão, continuo, porém, a pintar todas as formas de um “eu” desconhecido, em tons de um cinzento abstracto. Com movimentos irregulares, nervosos e forçados, tento materializar-me com todas as cores e formas possíveis, mas é na penumbra que o meu olhar se estende. Desisto. Desisto de tentar perceber se fui eu que me perdi ou se foi o meu lugar que se esqueceu de mim. A partir do instante em que os papéis me sobram rasgados já de nada me vale tentar alcançar a compreensão dos pequenos nadas que restam na consciência.
A certa altura deixei de me ver. E de querer alguma coisa. E resta-me o nada, que é, mesmo assim, maior do que sou.

Wednesday, January 04, 2006

Todos os dias em que não estiveres irei escrever-te. Nas palavras nada do que sinto pode caber, mas escreverei. Para não adivinhar a distância e o passado. Para sentir menos. Pode ser que consiga pendurar na parede do teu coração a minha janela, desarrumar tudo e estender-me no teu mundo, na esperança que me dês a chave. Ou que me abras a porta. Para espalhar pedaços de céu, para sempre, nos teus minutos. Esse teu silêncio diz mais de ti do que se dissesses. E é por isso que te acredito mesmo que continues a fugir. E quero que me deixes. Foge sempre para que nunca te alcance. Para que o sonho me faça correr. Mesmo na ausência de hoje, em que quase te sinto como se fosses gente, vale mais pintar os dias de ternura e deixá-los respirar sorrisos do que te chorar. Não é difícil. Deixar a marca da doçura esbater as manchas esborratadas da angústia. Instantes há em que desejo que te engasgues violentamente nessa mágoa que te veste Pode ser que, de uma vez por todas, me pendures na janela do teu coração e me deixes desarrumar tudo. Ou que me abras a porta. Para aprenderes a agarrar os minutos como pedaços de céu. E é por isso que em todos os dias da tua ausência escrever-te-ei, ainda que nas palavras nada do que sinto possa caber…