Monday, January 23, 2006

“Não, não quero nada
Já disse que não quero nada
(…)
A única conclusão é morrer (…)”

Álvaro de Campos

A certa altura deixei de me ver.
Acho que foi por ter ousado sacudir o pó do passado e revisitado o meu outro lugar. Aí tudo me pareceu tão etéreo, tão mais denso, tão mais luminoso, tudo tão maior que, num suspiro silencioso, dos que traduzem tudo o que nos vai na alma, não mais senti vontade de regressar à vida. Pode ser que isto só aconteça dentro de mim, a morte, e que os meus passos vão continuando a suceder-se no tempo real, tão autenticamente que ninguém ousará questionar a sua mentira.
Até à exaustão, continuo, porém, a pintar todas as formas de um “eu” desconhecido, em tons de um cinzento abstracto. Com movimentos irregulares, nervosos e forçados, tento materializar-me com todas as cores e formas possíveis, mas é na penumbra que o meu olhar se estende. Desisto. Desisto de tentar perceber se fui eu que me perdi ou se foi o meu lugar que se esqueceu de mim. A partir do instante em que os papéis me sobram rasgados já de nada me vale tentar alcançar a compreensão dos pequenos nadas que restam na consciência.
A certa altura deixei de me ver. E de querer alguma coisa. E resta-me o nada, que é, mesmo assim, maior do que sou.

3 comments:

Um_palhaço_triste said...

Talvez o hábito te tenha toldado a visão ou talvez a visão não te tenha deixado nunca aperceber do hábito e por isso te pintes apenas com as cores que julgas ter e não tentes pintar-te de cores que no fundo tens. O cinzento abstracto pode ser a antecâmara da morte imaterial interior que sei que consideras inevitável, mas há muito que me recuso a pintar-me dessas mesmas tuas cores e não posso deixar de tentar que tu também o faças ainda que como tu saiba que o nada é maior que nós.
Ass: Um Palhaço Triste

Joana said...

Continua a subsistir a dúvida. A extrema dificuldade em mudarmos o rumo dos passos. A razão de não cedermos aos impulsos. A incoerência entre a possibilidade do sonho e a limitação da realidade. Há momentos de ilusão que sobrevivem e nos vestem o olhar de cores inebriantes. Mas há o som do dia que nos desperta. Do dia em que é forçoso estar, mais do que ser. Em que é imperioso saber, mais do que questionar. Em que não há espaço. Nem liberdade. Nem sequer verdade...

Um_palhaço_triste said...

O som desse dia não te desperta da ilusão! Antes pesa a ancôra no ontem fazendo com que as noites caiam lugubres e lentas como se fartas estivessem de o fazer todos os dias. Assim será sempre dificil mudar o rumo dos teus passos pois nunca verás que a liberdade não é uma edição do passado limitada pelos muros desse teu presente em que é forçoso estar!... Precisas de uma terceira via que não te faça crer que o imperioso não é o saber mas o questionar! Mas quererás?!