Thursday, October 19, 2006

"Ao mergulhar, o mar entrou-lhe de roldão no pensamento e deslocou-lhe os sentimentos para uma zona de tal modo abstracta e afastada de qualquer tipo de emoção, que por momentos deu duas ou três braçadas num plano de si mesmo a que jamais tivera acesso e que, por muito pouco democrático desígnio da natureza, lhe pareceu que até então estivera reservado a deus. Fruto de alguns segundos, que cada poro do seu corpo registou de maneira diferente, acrescentando-lhe ao que acima se descreve uma sensação de elasticidade cronológica de que se lhe afiguraram pouco dignos os seus órgãos, esta experiência foi interrompida por um regresso à superfície que lhe devolveu a presença do areal e dos rochedos a que naquele instante a aragem insuflava uma realidade disjuntiva."
Luís Miguel Nava in O CÉU SOB AS ENTRANHAS (1989)

É como me sinto hoje, inundada de mar…

Wednesday, October 04, 2006

O Passado Sempre Presente

Com uma monumentalidade esmagadora que se prolonga no infinito do céu, ergue-se a cúpula, sólida e majestosa, que mais parece proferir uma bênção a todos os homens e mulheres que por ali meditam, num silêncio arrebatador.
A fachada é coroada por um frontão triangular abraçado por duas torres sineiras com relógios, onde se salpicam ordenamente estátuas monumentais e figurações relevadas alusivas ao mistério do Sagrado Coração de Jesus.
Não me detive nos passos, agora comandados pelo espírito, esqueci-me das horas que atrapalham o tempo dos homens e deixei-me mergulhar naquele espaço onde matéria e espírito se misturam harmoniosamente.
A nobreza dos materiais que ornamentam o silêncio daquele lugar dota o espaço de uma sobriedade quase perfeita. Ao fundo, a tela A Ceia, de Pompeo Battoni. No transepto direito, o túmulo estilo império de D. Maria I.
Impressionante como os pequenos detalhes invisíveis ao olhar superficial saltam agora à vista como sinais de devoção profunda. Já lá tinha entrado umas poucas vezes mas foi a primeira vez que interiorizei verdadeiramente a beleza firme e séria da Basílica da Estrela.
Invadindo o silêncio do momento, avança sobre mim uma senhora delicada com uma brochura da Basílica na mão questionando-me sobre a vontade de participar na visita guiada que se iniciaria dentro de alguns momentos. Agradeci o folheto com moderado interesse, com um movimento ainda embalsamado pelo relaxamento de espírito que experimentava, e recusei distraidamente a participação na visita. A senhora afastou-se com um sorriso e, enquanto a mesma se dirigia já a um casal que se preparava para tirar uma fotografia à nave central, aproveitei para me sentar uns minutos nos assentos de madeira enfileirados no corredor lateral direito. O folheto apresentava na parte de cima uma fotografia admirável da fachada principal da Basílica, que é densificada pela informação histórica escrita mais abaixo. Aí se diz que a Basílica nasceu da devoção da princesa herdeira D. Maria, futura rainha D. Maria I, que fez um voto no dia do seu casamento de que, no caso de ter um filho varão, que veio a nascer em 1761, procederia à construção de um convento para as religiosas Carmelitas Descalças.
Envolta num silêncio vertiginoso e irrecusável, demorei-me a sentir toda a história presa nas pedras erguidas pela força daquela devoção originária, quase embrenhada nos abismos da vida espiritual, até ao momento em que a hora presente me obrigou a retornar aos minutos apressados que só atrapalham o tempo dos homens...