Thursday, September 29, 2005

Lágrima em mim

Sento-me no chão e descalço os sapatos que me magoam os pés completamente deformados. Olho de relance para um casal enfatuado e perfumado que passa por perto e sinto-me objecto desconhecido no meio desta calçada que não me pertence, um corpo estranho no caminho, que está aqui por acaso. E quando olho para estes sorrisos disfarçados de uma pose distinta que passam por perto mas que não me vêem tranquilizo a minha agitação por perceber que também eles não são felizes. Venderam a alma ao mundo e são adeptos cegos de duas regras: habitar e trabalhar. E o tempo serve-se deles, suga-lhes o sentido e preenche os seus corações com horários espartilhados, momentos de felicidade enganosa, alicia-os com um futuro que ninguém sabe muito bem se existe. E são tristes e como eu, corpos vazios e sem sentido que se dirigem para lado nenhum. Com o tempo também perdem dinâmica interior e é possível adivinhar em cada um destes olhares prazenteiros o desespero e a miséria que se lhes vai na alma.
Neste momento, passam dois miúdos de sapatilhas rotas e narizes ranhosos a rir. Aproximam-se, atiram-me insultos e um pontapé na minha perna estendida no passeio, fingem defender um remate e saltam por cima de mim. Ainda tento levantar a mão mas ela pesa-me demais para conseguir impor o respeito que os pais destas crianças não incluíram no lote da educação. Com o rosto espezinhado, volto a calçar os sapatos e desafio o meu corpo a deambular lá mais para diante por onde passam mais pessoas. Preciso de comer mas com este aspecto sou uma ameaça ambulante para a sociedade. E se lhes dissesse que já fui como eles um dia, que tive sentimentos, desejos e expectativas mas que optei por saltar sem pára-quedas de um avião em movimento e que o voo é inseparável da queda e que é por isso que nunca fiz nada e hoje não sirvo ninguém. Estou hoje aqui, danificada, pobre, suja, rasurada pelo espaço mas pelo menos não sou hipócrita cega, vagabunda de emoções como todos eles. E se lhes dissesse tudo isso. Esqueço-me porém que além de cegos andam todos surdos. Não podem ouvir. E isso dá vontade de rir. E mudos. Porque não falam não porque querem estar em silêncio mas porque não têm nada para dizer. Ainda no outro dia, enquanto os pombos se aninhavam perto de mim, impressionou-me ver tantos casais, tanta gente, na rua e nos restaurantes, que passam horas sem falar uns com os outros. Parece que escolhem os locais mais ruidosos para terem a certeza de que o barulho dos outros os liberta da obrigação de comunicar. E secretamente acho que estas vidas sociais intensas só servem para que uns se escapem dos outros e todos são obcecados em preencher o silêncio como se este não contivesse vida. Acho também que no fim, quando o barulho cessa por instantes, fica apenas uma insatisfação permanente e um completo receio pelo minuto seguinte. Gostava que uma dessas pessoas vestisse por um dia a roupa da minha personagem, fossem como eu, um nada exposto à canícula de sucessivos Verões e frios de desfiados Invernos. Perceberiam a força do silêncio. É uma pausa que muda a vida, altera a percepção do que estava antes e condiciona tudo o que vem a seguir. É a ele que me abraço quando tenho medo e são as suas vozes que sigo sempre que a realidade me atira pedras e me obriga a seguir para outro lado e para lado nenhum. E o rio. O rio tem sabedoria, acalma a impaciência e obriga a minha resignação face à morte e ao mundo que ainda há-de vir

3 comments:

Anonymous said...

A dor da injustiça! Muito duro e portante muito real.

Joana said...

É uma dor que nos arranha a alma mas que ignoramos com tanta facilidade...

Anonymous said...
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