Wednesday, August 10, 2005

Aquele olhar ávido de crescimento registava as minhas frases com olhos esbugalhados e dedos enrolados num papel de rebuçado verde. As minhas palavras esparsas como pingas isoladas despenhavam-se abruptamente na mesa redonda daquele litígio inútil. Não tinha ainda dado conta de que aqueles olhos acompanhavam as sílabas metralhadas por mim e continuava a gesticular argumentos para o ouvinte directamente acoplado ao erro cometido. Batia engenhosamente com os meus dedos na face da mesa cinzenta que decorava pobremente aquela sala neutra, vestida de um branco imparcial, enquanto roías nervosamente a tampa da caneta. E ia sorrindo para dentro à medida que ganhava terreno na disputa das nossas vidas. Em nenhum momento foste capaz de afastar dos dentes aquela tampa repelente e levantar o olhar na minha direcção. Ouvias desaguar anteriores harmonias e actuais desavenças sempre com a mesma inconsciência mórbida. E de repente o silêncio da tua resposta quebrou-se com o som franzido de um papel de rebuçado que é remexido agitadamente. Só aí dei conta da presença daquele olhar pequenino, estendido por detrás do sofá azul do lado da janela, que se debruçava amargurado sobre as minhas palavras. Na membrana mais sensível dos seus olhos, na qual se formam as imagens das aspirações futuras, percebi que a cor dos seus sonhos se tinha apagado. Uma mágoa profunda por lhe ter sido aberto o mundo real das contradições e mentiras, dos argumentos fáceis e da hipocrisia adulta daquela forma menos dissimulada do que inocente. Intimidada pela tua mudez oportuna e por aquela lágrima pueril, desfaço a minha razão e destruo as provas da minha convicção. Arrasto a minha cadeira à distância que me permite movimentar as pernas derrotadas e dirijo-me bruscamente para a saída. Naquele trajecto uma dor aguda atravessa os nervos centrais do meu corpo e quase me impede a fuga cobarde. E saio. Fujo eternamente da inquietação cruel da minha desumanidade sem saber que a vida já não corre perfeita nos vasos sanguíneos do meu corpo.

2 comments:

Anonymous said...

Cobardia de ser feliz

Tenho agora oportunidade de comentar este blogue que tanto aprecio e do qual sou leitor assíduo... Na sociedade em que vivemos (?) a pressão para ser feliz é tão grande que por vezes somos nós próprios a fechar portas de casas com janelas que não abrimos... frustramos possibilidades com medo de "ficar mal", de poder "correr mal"... recuso-me a aceitá-lo. A nossa condição humana obriga-me a aceitar o erro, tal como compreendo a verdade ou o bem, nessa luta desigual à qual diariamente somos chamados... O confronto com a doença, a infelicidade, a velhice, a invalidez está presente na vida desde o dia em choramos pela primeira vez... enfrentar é viver, ultrapassar é crescer... termino, para não retirar brilhantismo ao autor, perguntando de que vale a pena fugir eternamente?

Joana said...

Why do we fall down?

Não vale. Não vale a pena fugir porque nesse movimento acabamos por rasurar o que a vida nos proporciona. O sorriso deixa de ser espontâneo, as pessoas deixam de fazer parte de nós e perdemos a capacidade de nos darmos. E por isso é que a fuga acarreta sempre um pouco de cobardia, desumanidade e uma morte precoce dos sentidos. Não vale de facto a pena abandonarmo-nos. Deixo-me ficar. Porque há "janelas que ainda não abri".